quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Wheaton e a Controvérsia a Sobre se Muçulmanos e Cristãos Adoram ao Mesmo Deus

Wheaton e a Controvérsia a Sobre se Muçulmanos e Cristãos Adoram ao Mesmo Deus

(Wheaton College - crédito foto)

Robert J. Priest*

Tenho observado com interesse o desenrolar dos eventos ocorridos na Wheaton Collegei que tem sido noticiados nacionalmente - eventos que envolvem os esforços para demitir a professora Larycia Hawkins por causa de seus comentários relacionados ao Islã, e principalmente por seu comentário sobre Muçulmanos e Cristãos "adorarem ao mesmo Deus". Como um evangelical eu aprecio a presença e a influência de Wheaton no resto do mundo. Preguei na capela da Wheaton, tenho formados em Wheaton entre meus alunos e tenho amigos que são professores lá. Amo a Wheaton e desejo o seu melhor. Ademais, como muitos evangelicais, vejo a Wheaton como pertencendo não apenas à junta da Wheaton, sua faculdade, administração e corpo de ex-alunos - mas à comunidade evangélica mundial. O que a Wheaton faz, afeta-nos a todos.


(foto: http://drlaryciahawkins.org/wp-content/uploads/2015/12/larycia.jpg)

Enquanto observo o desenrolar da história, preocupo-me com a forma que a Wheaton tem contextualizado as questões, sobre as repercussões para o testemunho cristão e sobre sua falha em não incluir missiólogos e missionários como interlocutores. Isto é, para a maioria dos evangelicais nos Estados Unidos, nosso encontro com pessoas que são muçulmanas tem sido relativamente recente, relativamente superficial e demasiadamente moldado pelos impulsos da cultura de guerra estadunidense. E aquela categoria de evangelical estadunidense que tem desenvolvido um relacionamento próximo com pessoas que são muçulmanas é a de missionários e professores de missão (missiólogos) - muitos dos quais formados em Wheaton. Todavia, tais indivíduos, que representam o âmago da preocupação com o evangelho, e que representam uma mistura única de expertise profissional e sabedoria acumulada por décadas de estudo e experiência ministerial, não parecem ter sido adequadamente consultados (se é que chegaram a ser consultados). Com raras exceções, a maioria das discussões na mídia e na internet sobre este assunto parecem ter ocorrido como se missionários e missiólogos tivessm pouco a oferecer.

Embora pessoalmente não tenha nenhuma expertise relacionada ao Islã, ensino missiologia em um importante seminário evangelical (Trinity Evangelical Divinity School), fui presidente da Sociedade Americana de Missiologia (ASM - American Society of Missiology) e sou o atual presidente da Sociedade Missiológica Evangelical (EMS - Evangelical Missiological Society). Então, vejo a missiologia a partir de um ponto de vista privilegiado. Desta forma, estou ciente de que há muitos missiólogos com credibilidade excepcional devido a seus relacionamentos diretos e de longa duração com os muçulmanos e que são muito mais bem informados sobre a gama de questões em jogo do que aqueles que estão conduzindo esta conversa sobre Wheaton/Hawkins. Em resposta aos recentes eventos que se tornaram notícia em Wheaton, convidei uma série de missiólogos e missionários, todos atuando em instituições evangelicais tradicionais, todos com doutorado, a maioria dos quais com expertise profissional relacionada ao Islã, para escreverem ensaios curtos abordando a seguinte questão: "Quais são as implicações missiológicas de afirmar ou negar que muçulmanos e cristãos adoram ao mesmo Deus?" Enquanto a oposição binária de "afirmar x negar" está exemplificada no conflito entre Hawkins x a administração de Wheaton, pedi aos missiólogos que abordem apenas a questão e evitem comentar a situação de Wheaton. Além dos protestantes evangelicais convidados a responderem a questão, também convidei Edward Rommen, um teólogo de missão ortodoxo oriental, e Lamin Sanneh, um estudioso de missiologia católico romano, conhecido por ter se convertido ao cristianismo vindo do Islã. Desta forma, seus ensaios também estão incluídos aqui. O tema desta edição de Occasional Bulletinii inclui esses artigos, em ordem alfabética pelo sobrenome do autor, antecedido de um resumo descritivo do episódio Hawkins/Wheaton no artigo de Howell, logo abaixo.

Conforme li os artigos em questão, artigos que articulam uma variedade de pontos de vista, espantei-me com o quanto muitos deles discordam das ações de Wheaton. Também me espantei com a ideia de que muitos missionários e missiólogos evangelicais estadunidenses, e talvez o próprio Apóstolo Paulo, estariam em risco de demissão caso ensinassem na Wheaton College, já que muitos de nós possivelmente seríamos culpados da mesma coisa que a Wheaton College está punindo. Desta forma, de alguma forma arrependi-me de pedir a todos que evitassem comentar diretamente o episódio de Wheaton, principalmente pelo fato dos documentos em questão, tanto o de Larycia Hawkins quanto o de Stanton Jones, estarem disponíveis online para análise. Além do mais, todos nós temos uma participação em como as coisas se desenvolvem em Wheaton. Então, desculpem-me, mas irei violar minhas próprias instruções e comentarei sobre a relevância do tema desta edição de OB (Occasional Bulletin) sobre a situação de Wheaton. Meus comentários não tem a intenção de refletir entendimentos que todos os membros da EMS deverão concordar, mas são simplesmente as reflexões de um missiólogo comum, visando ressaltar a relevância das considerações missiológicas a esta situação.

A professora de ciências políticas de Wheaton College, Larycia Hawkins, citou rápida e aprovativamente a declaração do Papa de que muçulmanos e cristãos "adoram ao mesmo Deus". Da forma como entendi, foi dito no contexto de desejar expressar carinho e solidariedade aos muçulmanos americanos em uma época na qual eles frequentemente experimentam hostilidade dos americanos, inclusive dos cristãos americanos (veja Howell abaixo). Quando perguntada sobre sua declaração, perguntas cuidadosamente enunciadas em uma carta escrita pelo provostiii de Wheaton, Stanton Jones, ela esclareceu por escrito que sua referência a "adoração" não tinha a intenção de comunicar nada sobre "soteriologia" - ou seja, se as pessoas são salvas ou não, ou estejam em um relacionamento completo com Deus - mas foi simplesmente uma referência a sua "piedade encarnada". Em resposta à sua carta e sua recusa a renunciar à sua titularidade enquanto passasse por um processo de avaliação mais longo, o provost recomendou que Wheaton College a demitisse.

É digno de nota que Hawkins usara a palavra "adoração" da mesma forma que o apóstolo Paulo usou o termo em Atos 17.23, onde referiu-se a um altar ateniense a um deus desconhecido a quem ele disse que os atenienses "adoravam", e a partir de onde ele passou a tratar esse deus como sendo o mesmo sobre o qual ele desejava falar a respeito com eles. Ele claramente não tinha a intenção de entender o uso do termo "adoração" como que insinuasse algo soteriológico, que os atenieneses estivessem, desta forma, em um relacionamento salvífico com Deus. Da mesma forma que Larycia Hawkins, Paulo apenas se referiu à sua "piedade encarnada". Além do mais, como Hawkins, ao buscar uma base comum, estava disposto a assumir um referente comum, embora não houvesse um entendimento compartilhado sobre tal referente. [Para uma exposição completa de sentido referencial como relacionado ao assunto, veja, por favor, o útil artigo de Netland abaixo.] Os atenienses esperavam que ele falasse sobre outro deus, um deus não relacionado a suas próprias vidas. Todavia, ele referiu-se a um Deus já implicitamente reconhecido, um Criador "não longe de todos nós." Ele não usou uma palavra estrangeira para Deus, como Yahweh ou Elohim, mas, ao invés, uma palavra grega bastante comum, Theos. Ele estabelece, de maneira espantosa, uma base comum em Atos 17.28 ao citar dois filósofos estoicos que escreveram explicitamente sobre o deus do céu Zeus, embora, neste caso, ele reformulasse o referente como Theos: 'Pois nele vivemos e nos movemos e existimos' [Epimenides]. Como alguns dos vossos poetas tem dito. 'Porque dele também somos geração' [Aratus].

Missionários que adentram em novas culturas costumam debater-se ao decidir qual palavra em determinada língua deve ser usada para referir-se ao Deus da Bíblia. Em nenhuma sociedade os missionários cristãos encontraram uma palavra pré-cristã que implicasse de maneira completa a compreensão trinitária. Mesmo a palavra grega usada por Paulo para Deus, Theos, não trazia tal sentido trinitário. Todavia, missionários frequentemente, embora certamente nem sempre, encontram uma palavra para um Deus único, elevado e bom, o Criador do universo. Alguns missionários insistiram em usar palavras emprestadas de outras línguas para Deus. Por exemplo, entre os povos indígenas da América Latina, alguns insistiram em usar Dios/Yus, do espanhol. Tais palavras estrangeiras inadvertidamente apontavam para a natureza estrangeira da mensagem religiosa, frequentemente dificultando a resposta. Por outro lado, muitos missionários cristãos evangelicais tem usado termos indígenas para um deus superior ao se refereriem ao Deus da Bíblia. [Para exemplos deste caso, consultem Don Richardson ou Lamin Sanneh.] Como o apóstolo Paulo, estes missionários insistiam que a mensagem era sobre um referente já de algum grau reconhecido, mas sobre o qual o entendimento correto e completo necessitava exposição.

Tal abordagem missiológica paulina tem gerado frutos em todo o mundo. Multidões incontáveis tem abraçado o Evangelho cristão e entrado em algo que os evangelicais entendem como sendo um relacionamento salvífico com o Deus da Bíblia, um Deus que eles continuam se referindo como Hananim, se forem coreanos, como Apajui, se forem aguaruna, como Alá, se forem árabes. Tais novos crentes não costumam ver-se como tendo repudiado um falso referente anterior em favor de um novo referente, mas como compreendendo de maneira mais completa e respondendo apropriadamente ao mesmo Ser à luz da revelação especial de Deus nas Escrituras.

O Islã, claro, apresenta questões únicas. Diferente de algumas "religiões do mundo", o Islã tem conexões históricas e proximidade com o judaísmo e o cristianismo. A própria palavra "Alá" era a palavra para Deus usada por árabes judeus e cristãos, séculos antes de Muhammad, e é a palavra usada por cristãos árabes ainda hoje. Claro que os cristãos árabes, assim como Larycia Hawkins, concordam que nossa compreensão cristã sobre Deus diverge de maneiras importantes dos muçulmanos ou da compreensão judaica contemporânea a respeito de Deus. Todavia, construtores de pontes como o apóstolo Paulo estão alertas para a possível base comum como ponto de partida para o engajamento cristão. Considerem um missionário prototípico, Greg Livingstone, um ex-aluno de Wheaton College, e fundador de Frontiers, uma grande organização missionária destinada a compartilhar o Evangelho cristão com os muçulmanos. Em seu discurso de premiação, quando recebeu o "Prêmio por Notáveis Serviços à Sociedade" de 2009 de Wheaton College, perguntado se "havia alguma base comum entre cristãos e muçulmanos que tornaria alcançá-los algo mais fácil - coisas que temos em comum?" Livingstone respondeu que ele compartilhava muito mais base em comum com os muçulmanos que com os franceses seculares, e identificava "Deus" e "julgamento final" como duas das várias coisas que cristãos tem em comum com muçulmanos. Os missionários cristãos tem por vezes percebido que o próprio Alcorão estabelece uma possível base comum ao afirmar a verdade das escrituras judaicas e cristãs, e quando afirma aos cristãos que "nosso Deus e o vosso Deus são um". (Alcorão 29:46). Embora os cristãos evangelicais não aceitem que o Alcorão seja a palavra de Deus revelada, construtores de pontes, no entanto, valem-se da base comum proporcionada pela explícita afirmação muçulmana de que a Bíblia é de Deus. Mais ainda, eles podem perceber que o Alcorão descreve Alá de forma muitas vezes consistente com a Bíblia. Alá é o criador dos céus e da terra. Alá criou o primeiro homem e primeira mulher, Adão e Eva. Alá derramou o dilúvio sobre a terra nos tempos de Noé. Alá revelou-se a si mesmo a Abraão, entregou a Torá a Moisés no Sinai e deu os Salmos ao rei Davi. Alá enviou João Batista e depois Jesus e seus apóstolos a pregarem o evangelho. O Alcorão afirma o nascimento virginal de Jesus, seu messianismo e sua segunda vinda. Desta forma, cristãos construtores de pontes estarão alertas às continuidades, não apenas às descontinuidades, no entendimento de Deus sustentado por muçulmanos (e judeus) contemporâneos, comparado com um entendimento totalmente cristão. Muitos cristãos evangélicos tradicionais estão dispostos, como parte de seu engajamento cristão com os muçulmanos, a concordarem tanto com judeus e muçulmanos que o Deus de Abraão, onipotente e todo-sábio, realmente existe, e que devemos prosseguir em nossas conversas mútuas assinalando explicitamente uma medida de compreensão compartilhada sobre este Deus, a despeito de nossas igualmente importantes diferenças. A afirmação feita por Larycia Hawkins de que "adoramos ao mesmo Deus" é, da mesma forma, uma afirmação de base comum, embora seja uma afirmação profundamente ambígua caso venha sem as devidas ressalvas. Para uma investigação sistemáticas sobre os vários significados possíveis de tal afirmação, veja Netland abaixo. Quer ou não alguém creia que ela tenha falhado em qualificar apropriadamente seu significado pretendido (como eu e a maioria de nossos colaboradores de OB cremos), dada sua explicação posterior sobre o que ela quis dizer, pessoalmente não vejo nada no que ela tenha escrito que contradiga a posição doutrinária de Wheaton.

O que é que eu temo caso Hawkins seja demitida baseado nas razões e evidências publicamente afirmadas? Temo que o significativo testemunho cristão construtor de pontes da única professora titular afro-americana membro do corpo docente da Wheaton College seja anulado. Temo que o episódio danifique nosso testemunho evangélico e a credibilidade junto à comunidade muçulmana, junto à América Negra, e junto ao mundo secular que nos assiste. Temo que a perda da credibilidade afete nossos legítimos direitos legais de reivindicarmos proteção às liberdades religiosas. Temo que o caso estabeleça um precedente que ameace o trabalho de missionários e missiólogos evangelicais tradicionais. Afinal de contas, muitos missiólogos, eu incluso, têm escrito de maneira aprovativamente sobre a ideia de que os missionários podem sinalizar apropriadamente que compartilhamos um referente comum quando falamos de Apajui, Hananim ou de Alá. Temo que evangelicais que desejam estabelecer, de maneira amorosa, criativa e empreendedora, relacionamentos de testemunho positivo com muçulmanos e outros sejam excessivamente inibidos e detidos por medo de seus pares cristãos e de como eles poderiam reagir. Temo que as mulheres e as minorias, principalmente, passem a temer a vigilância desconfiada em nossas comunidades, e deixem de viver suas vocações missionárias segundo a vontade de Deus em confiança, alegria e liberdade. Temo que os muçulmanos entendam que a ideia da fé em Jesus exige o repúdio a Alá como mal, e que isto represente uma enorme barreira na consideração da verdade e bondade do Evangelho. Muitos missionários com extensa experiência direta guiando muçulmanos à fé em Jesus testificam que esta é uma mensagem missiologicamente problemática de se mandar, contraprodutiva ao testemunho do Evangelho (veja, por exemplo, Greenlee, Naylor, Travis).

Todavia, como cristão, sei que devo viver com esperança e oração, não com temor. Então, no que é que eu tenho esperança e pelo qual oro? Oro e tenho esperança de que todas as partes envolvidas reflitam sobre o que está em jogo exatamente, enquanto ouvem a sabedoria de outros (missiólogos inclusive). Oro e tenho esperança para que em sabedoria, humildade e destemor eles cheguem em conjunto a um caminho a seguir que honre a Deus e recomende o evangelho cristão a outros. Mais ainda, o que quer que aconteça em Wheaton, oro e tenho esperança de que a comunidade evangelical nos Estados Unidos seja encorajada a demonstrar sabiamente o amor e respeito devido aos muçulmanos nos Estados Unidos - e que isso contribua para uma abertura ao testemunho do Evangelho, assim como a uma sociedade civil pacífica. Finalmente, já que nosso foro é o da missiologia, oro e tenho esperança de que os missiólogos possam tomar o discernimento e a compreensão que eles forjaram em lugares distantes e articular essa compreensão corajosamente e claramente para que os evangélicos norte-americanos de hoje, quer sejam seminaristas, docentes e administradores das faculdades, pessoas de negócios e membros das juntas diretivas. Oro e tenho esperança de que possamos ajudar outros a compreender que boas intenções não basta, que atos dramáticos e pronunciamentos são melhores sustentados por compreensões profundas em todos os sentidos relevantes, tanto culturais quanto doutrinários, de forma a evitarmos ambiguidades, mal-entendidos e até heresias. Por outro lado, espero que possamos avaliar adequadamente que a vanguarda no engajamento espontâneo com o "outro social" é sempre necessariamente confusa, que os julgamentos daqueles não similarmente engajados são frequentemente imprecisos, e que tais trabalhadores de linha de frente precisam de nossa valorização e apoio. Finalmente, espero e oro para que possamos transformar isso em um momento ensinável que beneficie toda a nossa comunidade evangelical, tanto no testemunho do Evangelho quanto em nossa participação na sociedade civil.

* Robert J. Priest é um Professor de Estudos Internacionais na G.W.Aindeen e Professor de Missão e Antropologia na Trinity Evangelical Divinity School.


Traduzido por Fabio Martelozzo Mendes ( fabiomartelozzo@gmail.com )
i A Wheaton College é uma faculdade particular cristã, na tradição protestante evangélica, localizada em Wheaton, Illinois, localizada a quarenta quilômetros de Chicago. A faculdade foi fundada por abolicionistas em 1860.

ii Boletim publicado pela EMS – Evangelical Missiological Society para anunciar as conferências nacional e regionais e outras notícias da sociedade, apresentar novas ferramentas para o ensino da missão e a sua prática, bem como promover a reflexão sobre missiologia.

iii Provost é um administrador acadêmico sênior em muitas instituições de ensino superior nos Estados Unidos e no Canadá, equivalente a um pro-vice-chanceler em algumas instituições no Reino Unido.

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